Publicado em UWC Changshu China

Boot Camp

Umas das atividades extracurriculares em que me inscrevi chama-se Boot Camp. São sessões de 1h com exercício físico de alta intensidade em que o objetivo é cada um dos participantes tirar o maior proveito da sua capacidade física. No final de todas as sessões, sinto-me a transbordar de felicidade, com a sensação de que aqueles 60 minutos que acabei de viver valeram imenso a pena.

Depois de um mês e meio de UWC sinto que a descrição mais aproximada do meu dia a dia é um Boot Camp intelectual permanente. Um Boot Camp que me desafia em tantas frentes diferentes que acabo sempre com o coração a mil e a respiração cortada.

Esta semana, saltei uns quantos níveis e aterrei num Boot Camp intelectual de intensidade altíssima. Aterrei na Golden Week.

A Golden Week é uma semana em que toda a China se junta para celebrar o País do Centro, 中国 (em caracteres chineses, a tradução literal de China equivale a País do Centro). Desde o Norte até ao Sul do país, desde os mais novos até aos mais velhos, ninguém falha as celebrações. O país pára e curva-se, deixando os mooncakes (doce tradicional desta época) e as refeições em família subir ao palco e dançar ao som do Erhu.

Para comemorar o país que de forma tão hospitaleira nos recebeu, o colégio dá-nos dez dias de férias, que podem ser utilizados “ao gosto do freguês”. Estes dez dias foram, sem sombra de dúvidas, uma imersão cultural incrível, em que vivi a China na primeira pessoa.

Partimos de Changshu sexta feira à tarde, rumo à nossa primeira paragem – Shanghai. Shanghai foi, sem sombra de dúvidas, uma enorme surpresa. As luzes, os carros, as pessoas, a agitação. Senti-me, de um momento para o outro, engolida pelos arranha-céus, cega pela imensidão que paira no ar poluído de Shanghai.

Shanghai é uma das maiores potências económicas do mundo pelo que é preciso ter algumas cautelas, mantendo sempre uma distância de segurança entre nós e a febre consumista. Felizmente, tive a sorte incrível de ter returning students e(spetaculares)xperientes a guiarem-nos pela melhor face de Shanghai.

Numa das noites, depois de visitar a Bund, um dos musts de quem visita Shanghai, dois segundos anos (um deles, o João, o meu segundo ano português ❤) disseram-nos que tinham uma surpresa para nós (sendo “nós” um grupo de 8 alunos da China, Portugal, Noruega, Coreia do Sul, Madagáscar e Venezuela). Ficámos todos em pulgas e seguimo-los até ao lobby de um hotel incrível, com trinta andares e luxo incomensurável. Levaram-nos até ao trigésimo e último andar do hotel, um terraço do outro mundo, com um jacuzzi fantástico no meio, em que conseguimos ter uma vista sobre a cidade inteira. Senti-me suspensa no ar, com o coração a mil. Como que por magia, a agitação incessante desta cidade que parece não dormir ficou congelada no tempo. As luzes a tiritar prédio sim, prédio sim, abraçaram-me com tanta força que fiquei com a respiração cortada. Senti-me fora de mim, com pessoas incríveis, num local inexplicável.

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Shanghai convidou-nos também a dar uns fantásticos passeios de bicicleta à luz da Lua, a explorar o fantástico Art District e a dar longas caminhadas por ruas estreitinhas, muitas vezes abafadas pela imponência da West Nanjing Road. Tudo isto ao som de conversas únicas, com pessoas tão especiais.

De Shanghai apanhámos o avião para Shijiazhuang, a cidade da Joyce, uma das minhas fantásticas amigas chinesas. Shijiazhuang é uma cidade no Norte da China, perto de Beijing, muito marcada pelo patriotismo e pela forte componente cultural. Fizemos tanto nos curtos cinco dias que passámos em Shijiazhuang que me é sinceramente difícil resumir tantas emoções, sabores e experiências em meia dúzia de palavras. Vou dar o meu melhor.

Uma das melhores partes de ter passado estes dias em Shijiazhuang foi o facto de ter passado um festival nacional no seio de uma família chinesa. Senti, por isso, a cultura chinesa de forma muito próxima.

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Em termos gastronómicos, esta estadia foi uma autêntica montanha russa. Experimentei todo o tipo de pratos e doces, desde carne de burro a uma especiaria que paralisa a língua de quem a come durante 5 minutos. Os chineses são talvez o povo mais acolhedor que eu já tive o prazer de visitar. Acolhedores e preocupados com o bem-estar dos visitantes como são, não nos deixavam nunca acabar a refeição antes de todas as migalhinhas terem desaparecido. Em todas as refeições, uma quantidade enorme de doces e salgados era colocada no centro da mesa e partilhada por todos, com muita conversa pelo meio (as mesas chinesas têm a particularidade de terem um vidro no centro que pode ser girado de forma a facilitar a partilha). Isto porque nas refeições chinesas tudo gira em torno da partilha. Da partilha e dos chopsticks (“pauzinhos”) – já estou uma mestre na arte dos chopsticks.

Para além da gastronomia, alguns dos episódios mais especiais da estadia em Shijiazhuang foram a subida a uma montanha lindíssima, a cerimónia de chá em que participamos e a visita que fizemos a casa de um mestre de caligrafia chinesa.

Começando pela montanha. Na China o conceito de escalar montanhas é diferente daquele que eu sempre conheci. Aqui as montanhas estão equipadas com uma enorme escadaria, desde a base até ao topo da montanha, com pequenos templos aqui e acolá. Cada degrau (dos imensos degraus que subimos) valeu a pena. Encontrámos uma vista incrível, um ar puríssimo e um sentimento de leveza fantástico.

A cerimónia de chá foi também uma experiência espetacular. Fomos a uma Casa de Chá, onde nos serviram chás de diferentes origens, seguindo sempre o rigoroso protocolo que reina estas cerimónias.

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Finalmente, a casa do mestre de caligrafia chinesa trouxe-me momentos únicos e memórias inesquecíveis. A arte da caligrafia chinesa é algo que, desde que cheguei ao “País do Centro” me cativou e despertou imensa curiosidade. Tive, nesta visita, a oportunidade de aprender com uma pessoa muitíssimo experiente. Tive a oportunidade de ver, tocar, sentir a caligrafia chinesa pelas mãos de alguém que vê, toca e sente esta arte de forma tão profunda. Foi incrível.

Depois destes dias tão especiais, voltei hoje para o colégio, onde encontrei amigos que me são tão queridos, o meu quarto que me é tão casa e o ambiente UWC, que sinto já tanto como meu.

Voltei ao colégio, sem fôlego, mas tão pronta para mais um período de escola intenso, cheio de imprevistos incríveis pelo meio. Voltei ao colégio, sem fôlego, mas ansiosa para que próximo nível deste Boot Camp em que agora vivo comece e revele as surpresas que me trás.

Júlia, UWC Changshu China (2017-2019)